Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, faz, num depoimento ao DN, críticas ao modelo da ADSE explicando porque “está em falência”, acusando-o de fomentar “distorções no SNS”. Diz ainda que os privados assumiram investimentos “com base nos fundos da ADSE”.
“Com o intuito de colmatar a situação desfavorável em que se encontravam os funcionários públicos em relação aos trabalhadores das empresas privadas, a Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado foi constituída em 1963. Até então, os funcionários públicos estavam apenas protegidos em casos de tuberculose e de acidentes em serviço.
Em 1979, com o culminar das políticas sociais iniciadas em 1971, foi criado o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Contudo, o Estado, enquanto entidade patronal, manteve um regime de benefícios para os funcionários públicos. Em 1987, através da aprovação da tabela de preços a aplicar pelo Serviço Nacional de Saúde, iniciou-se a faturação de prestações de saúde aos subsistemas cujos beneficiários a ele recorressem.
Esta matéria é reforçada através do Estatuto do SNS, publicado em 1993, onde os subsistemas de saúde são corresponsabilizados pelos encargos resultantes da prestação de cuidados aos seus beneficiários. Desde então, cerca de 15% da receita dos hospitais públicos passa a depender das prestações realizadas aos subsistemas públicos, reconhecendo-se que existiam dificuldades em identificar os beneficiários dos subsistemas e proceder à respetiva faturação e recebimento.
Durante anos, a ADSE foi deficitária em relação às contribuições dos beneficiários, sendo iminentemente financiada através de transferências do Orçamento do Estado. Para melhor ilustrar esta opção governamental: em 2006 a ADSE contava com 786,1 milhões de euros de transferências diretas do Orçamento do Estado, numa despesa total de 927 milhões de euros – 84,8%. Em 2010 foi subscrito um memorando de entendimento com o objetivo de eliminar a faturação entre as entidades do SNS e os subsistemas de saúde públicos, sendo o SNS compensado com 548,7 M€. No ano subsequente, este valor desaparece e, no final de 2011 o SNS acumula 3 mil milhões de euros de dívidas a fornecedores.
O Plano de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) vem obrigar os subsistemas à auto-sustentabilidade. Ou seja, a que as contribuições cubram os custos. A ADSE passa a ser um sistema complementar do SNS, à semelhança dos seguros voluntários de saúde, e não um sistema substitutivo do SNS.
Entre 2015 e 2016, a ADSE aumentou a sua despesa em 19,6%, tendo apresentado um crescimento na rede de prestadores convencionados de 26,3%. Como reconhece o Tribunal de Contas, o atual modelo está a entrar numa espiral de despesa que parece insustentável. Com base num estudo realizado por uma entidade independente, a pedido da ADSE, esta não será sustentável para além de 2024, apresentando défices a partir de 2019.
Num cenário mais negativo, pode entrar em rutura já em 2020. Apesar de tudo, a ADSE continua a sustentar o crescimento do setor privado de saúde. Entre 2010 e 2016, o financiamento da rede convencionada da ADSE aumentou de 190,2 milhões de euros para 405,3 milhões de euros – um aumento de 112% – substituindo-se ao seu regime livre.
Pagamento a médicos por consultas que dão cirurgias ou exames
A ADSE não compete pelos mesmos recursos financeiros do SNS, sendo financiada pelos seus beneficiários. Contudo, ao financiar entidades privadas, promove a disputa pelos recursos humanos do setor da saúde, concorrendo com o SNS. Com efeito, a evidência internacional demonstra que as modalidades de pagamento utilizadas pela ADSE (pagamento ao ato) e o baixo nível de controlo e auditoria favorecem a sobre-prestação de cuidados, a fraude e a realização de práticas clínicas menos responsáveis. Por exemplo ao nível dos partos, onde cerca de dois terços são realizados por cesariana – mais do dobro das taxas do SNS.
Com um custo baixo de consulta externa – o doente apenas paga 3,99€ e a ADSE 14,47€ – os prestadores privados desenvolveram técnicas de compensação para aumentar a sua faturação. Assim, foram aplicando índices de conversão cirúrgica (ICC) onde os profissionais de saúde são avaliados pelo número de consultas que geram cirurgia ou mesmo meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Mais uma vez, de acordo com a evidência internacional, não será estranho observarmos que o volume prevalece sobre a qualidade, colocando em risco a segurança dos doentes.
Assim, o atual modelo da ADSE fomenta uma série de distorções no sistema de saúde com particular efeito sobre o SNS. Estando este limitado na sua capacidade gestionária, vamos assistindo passivamente à perda de recursos humanos e de doentes enfraquecendo a capacidade e qualidade de resposta do SNS. Como sabemos, o escrutínio ao Hospital Público não é acompanhado com igual atenção e rigor sobre o setor privado. Nem mesmo a Legionella colhe as mesmas interpretações caso se desenvolva em ambiente publico ou ambiente privado.
O conflito atual entre a ADSE e os prestadores privados é o culminar de todos os equívocos e expectativas que vêm sendo criados em torno deste subsistema. Evidentemente, bastava que a ADSE não fosse instrumentalizada politicamente e que tanto os sucessivos governos como os prestadores privados tivessem percebido que as circunstâncias mudaram.
No campo das expectativas, os prestadores privados consolidaram-se em grandes grupos económicos num mercado altamente competitivo, e assumiram investimentos avultados numa estratégia de cobertura territorial com base nos fundos da ADSE. Por outro, a ADSE é agora o seguro de saúde complementar mais relevante, sendo responsável por 20 a 30% (na maioria dos casos, existindo casos em que será certamente superior a mais de 50%) da receita dos prestadores privados – mais do dobro dos seguros privados de saúde.
Nesta relação de elevada dependência, ambos estão obrigados a entenderem-se através de relações transparentes e estáveis. É tempo da ADSE aplicar modelos de pagamento prospetivos baseados num mix de atividade e resultados, protegendo, desta forma, o interesse dos beneficiários, dos prestadores e o modelo nacional de cobertura universal de cuidados de saúde assegurado pelo SNS.
Talvez o conflito atual venha a ser útil. Nem que seja para percebermos até que ponto as sucessivas Leis de Bases da Saúde e as propostas atualmente em cima da mesa são insuficientes para enquadrar e preparar o sistema de saúde português para o futuro.
Às estruturas do Ministério da Saúde, à Entidade Reguladora da Saúde, ao Governo e ao Parlamento exige-se que cumpram a sua missão, protegendo a saúde dos portugueses, incluindo os beneficiários da ADSE.”
Depoimento publicado no Diário de Notícias a 15 de fevereiro de 2019. O artigo original pode ser lido on here