A reduzida morbilidade e mortalidade da covid-19 em Portugal tem e terá um valor incalculável para a sociedade Portuguesa. Podemos sempre racionalizar que este sucesso dependeu da localização geográfica de Portugal, do surgimento tardio da infeção e da tomada de medidas de distanciamento físico numa fase inicial da epidemia, poupando-se o sistema de saúde a um colapso anunciado.

Esta ordem de ideias não deve minimizar o papel determinante da sociedade, da autoridade de saúde e do Governo. No que estava dependente destes, as medidas foram tomadas. A comunidade cumpriu e influenciou, a autoridade de saúde respondeu tecnicamente, o Governo decidiu bem. Face ao elevado grau de incerteza, outras decisões poderiam ter tido consequências dramáticas.

Tal apreciação não deve impedir uma análise rigorosa dos acontecimentos. Não podemos cair no erro da mistificação que tudo foi excelente ou que não existem consequências das decisões tomadas. Ninguém previu uma crise desta magnitude. Ninguém tinha um manual de atuação, mas após este processo de aprendizagem devemos ser capazes de melhor planear a resposta a estes fenómenos.

No pico da crise, decidiu-se concentrar a resposta na covid-19 em detrimento dos cuidados de saúde programados. Todos sabíamos que teria consequências negativas para a população, mas não libertar recursos para a covid-19 poderia ter tido efeitos piores. A decisão foi avisada.

Apesar do esforço realizado pela maioria dos hospitais, e seus profissionais, em garantir acesso via telefone aos doentes, atualmente começamos a ter dados concretos sobre a redução das prestações de saúde. Ficaram por realizar milhares de cirurgias programadas, mais de um milhão de consultas médicas, e um número incalculável de exames de diagnóstico, com impacto no aumento da morbilidade e da mortalidade. Ao invés de invertemos estes números, os hospitais e centros de saúde continuam muito limitados na sua capacidade de resposta, engrossando-se o número de doentes sem acesso a cuidados de saúde adequados.

Neste momento dispomos de conhecimento para poder planear respostas mais equilibradas que permitam manter uma resposta à covid-19 e a reposta a cuidados gerais. Para tal é necessário ter uma resposta em rede em que os recursos são maximizados e adaptados à evolução da epidemia. Temos falado de um SNS Dual, exigindo-se a definição da rede de prestação covid-19, incluindo cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados extra-hospitalares. Esta clarificação permitirá responder de forma planeada e ordenada, alocar os recursos necessários à covid-19 e libertar os restantes para os cuidados gerais. Este modelo permitirá ainda aumentar os níveis de confiança e segurança da população no acesso a hospitais e centros de saúde.

Por outro lado, sabendo-se que perto de 10% dos doentes internados em hospitais públicos aguardam respostas da comunidade, e que 20% dos doentes internados por covid-19 não necessitam de cuidados hospitalares, parece óbvia a necessidade de articulação com os serviços de segurança social.

Durante o período de maior incerteza, a redução das prestações de saúde foi inevitável. Neste momento é incompreensível não ser público um plano integrado de medidas concretas para responder às necessidades da população. Não falamos de reagendamentos, falamos de programas efetivos e estruturantes para aumento da resposta do SNS.

Face a mais de uma década de desvalorização, o SNS sai reforçado do ponto de vista político desta crise. Contudo, sai mais debilitado do ponto de vista do esgotamento de meios e da capacidade de resposta. A “redescoberta” do SNS deve ser aproveitada para congregar atores na necessária transformação da prestação de cuidados de saúde em Portugal. Assim exista liderança, conhecimento e vontade.

COVID-19: a pandemia incerta e imprevisível
COVID-19: a pandemia incerta e imprevisível

Artigo de opinião de Alexandre Lourenço publicado no Correio da Manhã a 10 de junho de 2020