O presidente da Associação de Administradores Hospitalares considera que o Governo falhou no planeamento dos escassos recursos do SNS para acudir a um número de doentes nunca visto e avisa que temos de estar preparados para um colapso dos cuidados de saúde. “Lamentamos ter deixado tantas pessoas para trás, sabendo que outras mais vão ficar”, admite Alexandre Lourenço.

Entrevista a Vera Arreigoso do Jornal Expresso

A ministra da Saúde alertou esta semana que estamos prestes a ultrapassar todos os máximos de doentes hospitalizados no SNS. Devia tê-lo feito mais cedo?

É evidente que a ministra tem obrigação de apresentar a situação, mas fazem falta medidas. Desde o final de março que temos dado nota da necessidade de haver uma gestão operacional de camas a nível regional. Por exemplo, quando [a ministra] disse que até dia 4 vamos ter mais de 400 doentes em cuidados intensivos, importava saber quais os hospitais que vão responder e quantas camas cada um deve ter previstas.

A ministra assegura que o SNS tem capacidade para 17.225 doentes covid em enfermaria e 852 em Intensivos. Estas camas existem, de facto?

Estas camas só ficam disponíveis se não tivermos ocupação por outros motivos. Não estão vazias e por isso é que na primeira vaga foi cancelada toda a atividade cirúrgica programada, primariamente a mais complexa, o que também já está a ser feito.

Ou seja, estamos a voltar ao cancelamento dos cuidados programados que queríamos evitar.

É inevitável. Desde abril que dizemos ser necessário um sistema dual para responder a doentes não-covid que ficaram por atender no início da pandemia e com flexibilidade face à situação epidemiológica. Infelizmente, não aconteceu. O próprio Conselho Nacional de Saúde Pública já disse que as medidas de reativação do SNS foram muito tardias. Houve uma janela de oportunidade entre meados de abril e final de setembro onde era importante reativar toda a atividade não realizada, mas chegámos a 31 de julho com mais de um milhão de consultas, 100 mil cirurgias e sete milhões de contactos presenciais nos cuidados primários por realizar.

E não aconteceu porquê se os profissionais continuaram a trabalhar?

Das duas uma: ou tinha existido o reforço substantivo da capacidade do SNS, com mais meios, ou incentivos para recuperar a atividade fora do tempo normal. Os primeiros incentivos, para a atividade cirúrgica, apareceram a 14 de julho, já em férias. Mesmo assim, em alguns hospitais foi o período com mais atividade dos últimos dez anos. E os meios foram colocados à disposição das instituições inicialmente por quatro meses.

Contrataram-se pouco mais de mil profissionais de saúde, um valor residual para fazer face a uma situação extrema

Mas o Governo repete que o SNS nunca teve tantos profissionais.

Há mais 5400 profissionais, mas no Orçamento para 2020, sem saber-se que ia existir uma pandemia, já estavam previstos 4200. Ou seja, para a covid foram contratados pouco mais de mil, um valor residual para fazer face a uma situação extrema. Quando começámos a ter indicadores, no final de março, de uma mortalidade não esperada, no mínimo devíamos ter feito uma análise concreta para criar acessos nas áreas onde a saúde dos portugueses estava mais fragilizada.

Por exemplo, ao médico de família?

A medicina geral e familiar diz-nos que os médicos estão sobrecarregados e têm grande dificuldade em reativar os serviços. A verdade é que os hospitais não estão a receber doentes encaminhados [pelos centros de saúde] para consultas, e daí para cirurgia ou planos terapêuticos. Há doentes com necessidade de cirurgia, de iniciar planos oncológicos ou cardiológicos e que não estão a ser identificados. Por falta desse acompanhamento [dos cuidados primários], muitas pessoas estão a ir à Urgência. Algumas podiam ir às farmácias, uma rede que está subaproveitada para esta resposta.

São precisos profissionais para os cuidados intensivos. Por que razão os hospitais não oferecem condições atrativas para conseguir recrutá-los?

Para contratar profissionais essenciais devíamos ter tido mecanismos para ir mais longe. É muito difícil atrair alguém com contratos de quatro meses. Para os intensivistas, sabendo que é um recurso altamente escasso e determinante, não se percebe porque se insiste em modelos antigos, como concursos públicos. Em março e abril, muitos destes profissionais no privado ficaram sem remuneração e podíamos ter tido um programa com salários competitivos [para os ir buscar]. E o mesmo em relação aos enfermeiros para os Intensivos. Não vamos buscar alguém com este grau de diferenciação a pagar a base do salário na Administração Pública.

Nos hospitais já começámos a viver situações limite…

Como estão a fazer?

Como na primeira onda, os hospitais estão a mobilizar enfermeiros das suas unidades com experiência em cuidados intensivos, contratando substitutos para os lugares de origem. O mesmo acontece com a saúde pública. O único instrumento de saúde para controlar a pandemia é o rastreio de contactos, e ficou menosprezado. Os médicos estão completamente sobrecarregados e já incapazes de controlar as cadeias de transmissão.

Qual é o espírito dos profissionais de saúde, sabendo que vão ter um número de doentes nunca visto?

É de apreensão, mas de entreajuda e de solidariedade. Espera-nos algo que nunca vimos nas nossas vidas.

Acredita que não vamos ter situações como as que vimos em Itália, com doentes ventilados no corredor?

Temos de estar preparados para isso, porque a probabilidade é grande. Nos hospitais já começámos a viver situações limite…

Quando é que dizemos que um hospital está no limite?

Quando as equipas não são capazes de prestar os cuidados mais adequados para cada doente. Por exemplo, haver um ventilador vago mas as equipas estarem de tal forma extenuadas que não conseguem dar assistência. Na primeira vaga houve profissionais que ficaram mais de dois meses sem ver os familiares. É uma pressão física e emocional enorme e insustentável meses a fio e não são os subsídios previstos a partir do próximo mês, no máximo de €219, que pagam isso. Lamentamos profundamente não conseguir dar melhores condições e termos deixado tantas pessoas para trás, sabendo que outras mais vão ficar.

Acredita que o SNS não vai colapsar e ter de pedir ajuda até a outros países para receber doentes?

O caso da Bélgica, com 10 milhões de habitantes como Portugal e com mais de cinco mil internados e mais de mil em cuidados intensivos, tendo nós menor capacidade, indica que poderemos ter de tomar opções muito difíceis. Deixarmos pessoas por tratar, decidir quem tem acesso ao ventilador. Oxalá que não cheguemos a esse ponto.

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