O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, fala da crise financeira que se vive nos serviços e de como poderia melhorar-se com maior orçamento e mais responsabilidade das administrações. Entrevista de domingo, DN/TSF.

Entrevista TSF-DN

Os protagonistas da política e economia vêm à Entrevista TSF/DN. A entrevista da semana passa ao domingo, com tudo o que temos que perguntar.

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Soube-se nesta semana que a dívida dos hospitais públicos aumentou 50% entre 2014 e 2017 – está atualmente em 2,9 mil milhões. Além disso, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) acumula resultados negativos no valor de 1,14 mil milhões. Isto é só o garrote das Finanças ou é também sinal de que a gestão dos hospitais públicos deixa bastante a desejar?
Creio que são vários fatores, que, naturalmente, passam muito pela pressão do aumento dos custos que ocorreu durante este período, essencialmente na área de recursos humanos, nas reposições salariais, nas novas contratações que vieram tentar suprimir a redução do tempo de trabalho das 40 para as 35 horas. E também o não acompanhamento no aumento do financiamento do setor face a essas pressões, o que leva a uma situação deficitária.


Também nesta semana, na comissão parlamentar da Saúde, o coordenador da estrutura que foi criada para apresentar propostas que combatam esta situação, portanto para a sustentabilidade do SNS, disse que sempre que se cobria uma dívida dos hospitais era como premiar a má gestão, e que aquilo que se devia fazer era evitar que essa dívida acontecesse, porque o que se está a passar é que os hospitais contraem dívida para resolver problemas. Qual é a sua opinião?

Estou totalmente de acordo com essa análise. Aliás, uma análise que temos vindo a apresentar sistematicamente é que a estratégia de gestão orçamental, essencialmente nestes últimos três anos, passou por uma restrição de tesouraria. Ou seja, ab initio os hospitais começam a trabalhar sabendo que vão ter uma situação deficitária no final do ano. Isto não é novo, de uma forma genérica, o setor empresarial do Estado trabalhou nos últimos 15 anos com este mecanismo, mas à partida temos essa situação deficitária que depois, no final do ano, verificamos que os hospitais acabaram por alavancar a sua atividade junto de fornecedores – a indústria farmacêutica, fornecedores de dispositivos e pequenos e médios fornecedores.

A dívida a fornecedores também está a atingir níveis pouco sustentáveis.

Daí essa dívida. Os hospitais cumprem os seus compromissos com os seus maiores fornecedores, que são os recursos humanos, de forma atempada, mas não têm capacidade financeira para cumprir as suas obrigações junto de terceiras entidades. Daí que esta restrição de tesouraria, acompanhada também por uma elevada restrição de autonomia das organizações, leve também a uma incapacidade dos próprios conselhos de administrações dos hospitais em conseguir aumentar a eficiência técnica destas unidades, e leve a este endividamento contínuo. Considerando que estes balões de financiamento aparecem geralmente no final de cada ano, na prática vamos estar a premiar as administrações dos hospitais que tiverem tido menor eficiência ao longo do período. Cria-se aqui, portanto, um movimento de injustiça nesta forma de alocação, sem responsabilização para os gestores pelo exercício decorrido. Por outro lado, isto está efetivamente a premiar os hospitais menos eficientes, mas tem um efeito que parece perverso também a nível do próprio desperdício do sistema, que é o facto de estarmos a colocar em risco os próprios pagamentos. Temos hospitais que podem estar a atingir prazos de pagamento da ordem dos 500, 600 dias. Naturalmente, os fornecedores vão repercutir esse atraso do pagamento nos preços de bens e serviços. Daí que neste momento, até por via desta política de restrição de tesouraria, esteja a ocorrer uma inflação de produtos e bens. Temos vindo a apelar, principalmente ao Ministério das Finanças, para a necessidade de termos um orçamento adequado para os hospitais e, depois, que seja dada autonomia.

Alexandre Lourenço, presidente da Associação de Administradores Hospitalares.
Alexandre Lourenço, presidente da Associação de Administradores Hospitalares.© Orlando Almeida/Global Imagens

O bastonário da Ordem dos Médicos dizia numa entrevista recente que existe um desfasamento entre a realidade e os orçamentos que os hospitais públicos têm para gerir. É esta a situação ano após ano?

É por demais evidente. A discussão que foi iniciada por nós há dois, três anos sobre esta matéria foi essencialmente em duas linhas: uma era a necessidade de termos orçamentos reais ou próximos dos custos reais, a outra era a de dever existir uma autonomia de gestão. Hoje, um dos maiores desperdícios que são gerados a nível hospitalar passa, por exemplo, por adiar uma cirurgia por falta de um profissional, não é preciso ser um cirurgião, pode ser um assistente técnico que não tivemos para transportar o doente de uma enfermaria para o bloco operatório e, pela inexistência desse profissional, podemos ter um cancelamento de uma cirurgia. O maior desperdício que existe é um conjunto de profissionais que estão a aguardar para realizar aquela cirurgia e ela não é realizada com danos para o doente e para a eficiência total do sistema.


Porque é que um hospital não tem autonomia para resolver uma situação como essa?

Está a fazer essa pergunta à pessoa errada.

Mas na prática, porque não tem essa autonomia, não pode contratar essa pessoa?

Não pode contratar essa pessoa. Durante o período de ajustamento económico tivemos uma restrição da contratação, que foi óbvia numa iniciativa de restringir a despesa, e que surtiu efeitos do ponto de visto imediato. Contudo, nos últimos três anos, o que veio a acontecer foi um alargamento dessa restrição. Imagine-se alguém em licença de maternidade, no setor de enfermagem ou no de assistentes operacionais existe uma taxa de feminização muito elevada, também existe uma taxa de rotação grande de profissionais, e temos profissionais muito jovens e, principalmente, senhoras em idade fértil. E os hospitais, por estarem incapacitados de contratar um substituto, ficam com aquele serviço coartado em parte dos seus profissionais.

Isso tem um prazo? Ou seja, imagine que se sabe que há uma mulher que está grávida e que vai tirar uma licença de maternidade, ou um pai que vai tirar uma licença de paternidade, há um prazo para que o hospital consiga finalmente ter essa substituição? Ou pode passar o tempo todo da licença sem haver substituição?

Pode, e podem passar vários períodos de tempo sem termos essa autorização. Aliás, o processo de autorização acaba por ser um processo avulso, arbitrário, que muitas vezes é difícil de perceber porque é que um pedido foi autorizado e o outro não.


Esse tipo de autorização é pedido ao Ministério da Saúde e tem de ter o aval do Ministério das Finanças, ou como é que funciona?

É um processo bastante burocrático, em que se dá início por parte de cada administração dos hospitais, que faz um pedido às administrações regionais de saúde e que, posteriormente, vai à administração central do sistema de saúde e depois vai ao titular da pasta da Saúde e, depois, segue para o Ministério das Finanças. Há uma coisa que me parece importante, é que existe uma evolução para 2019 e que parece muito positiva. É a de termos selecionado 11 hospitais, os mais eficientes, à partida, de acordo com os grupos de complexidade desses hospitais, que vão ter uma autonomia alargada que vai dar algo de que temos vindo a dar nota que é ter um mapa de pessoal e, dentro dele, poderem ser realizadas essas contratações. Isto é muito positivo. Ou seja, os hospitais vão ter capacidade para contratar.


Isso significa não só substituições como também, eventualmente, um funcionário que possa sair ser substituído sem necessidade do pedido de aprovação?

Exatamente. E vamos ter um contrato de gestão aplicado, que aliás está previsto na lei desde 2012. Isto vai permitir uma avaliação clara do exercício profissional dos conselhos de administração e pode levar à sua demissão caso tenham maus resultados.

Isso acontece porque o próprio Estado tem má imagem da gestão dos hospitais, ou seja, há a ideia de que essas regras existem todas para combater um certo despesismo. É assim? 
Esta evolução para os hospitais é muito positiva e vai evitar este tipo de comportamento. Existe um preconceito claro do Ministério das Finanças, ou desta equipa do Ministério das Finanças, perante o setor da saúde.

"Há hospitais com 200 camas contratadas em lares de terceira idade"
Alexandre Lourenço


E é fundado ou não?

Não. Existe uma incompreensão sobre o modelo de prestação de cuidados, sobre o que se faz dentro de uma instituição de saúde, particularmente num hospital, uma das áreas mais complexas de organização em termos empresariais. E, claro, existe uma incompreensão por parte de um técnico do Ministério das Finanças da forma como funciona a operação. Não conseguem entender as particularidades da operação, particularmente num ponto: é que, ao contrário de uma repartição, que pode fechar às cinco da tarde em vez de às seis, o hospital está a operar sempre. Também podemos ter um utilizador não satisfeito com o serviço de Finanças, por algum erro que tenha sido cometido, mas dentro do hospital um erro tem custo de vidas humanas e danos sobre a saúde individual de alguém. Deve ser devolvida a capacidade de decisão ao Ministério da Saúde. Parece-me totalmente desajustado que o ministro das Finanças seja responsabilizado pelo que está a acontece no Ministério da Saúde, que é o que acontece atualmente. Se é necessário um titular da pasta das Finanças para autorizar a contratação de um assistente operacional, algo me parece errado. Ser o Terreiro do Paço a decidir se é preciso um assistente operacional no hospital B, C ou D parece-me até caricato. Portanto, é necessário devolver essa capacidade gestionária ao Ministério da Saúde, ao titular da pasta da Saúde, que depois vai também, naturalmente, delegar essa responsabilidade nas administrações dos hospitais e, melhor do que tudo, responsabilizar os gestores que estão à frente dos hospitais, para que, se tiverem um mau desempenho, sejam afastados. Isto de uma forma muito transparente, através de um contrato de gestão, que é conhecido, que é público e que cada um de nós pode avaliar no final de cada ano.

É isso que marca muito a diferença entre setor público e o setor privado e bons resultados de que temos ouvido falar, nomeadamente quando a gestão é de parceria público-privada (PPP)?

É obrigatório que uma parceria público-privada tenha melhores resultados do que um hospital de gestão pública nas condições atuais.

Porquê?

Por duas ordens de razão: porque tem autonomia e pode tomar decisões imediatas para resolver problemas. Dentro de uma parceria público-privada isto é falado de um dia para o outro, de manhã para a tarde é possível tomar este tipo de decisões.
O que me parece que não existiu ao longo dos anos e do processo de tornar os hospitais públicos em empresas – e que é muito positivo – foi a responsabilização da gestão. Houve o processo de criação dos hospitais Sociedade Anónima, dos hospitais de entidade pública empresarial e esse processo decorreu sem responsabilizarmos os gestores. O que existe nas parcerias público-privadas é que, se um conselho de gestão de uma PPP tiver mau resultado, imediatamente a administração – a Luz Saúde ou a José de Mello Saúde – vai afastar aquela equipa. Nós precisamos disso também nos hospitais públicos. Precisamos da capacidade de autonomia, naturalmente, mas também de responsabilizar os gestores, que se tiverem maus resultados devem ser afastados. Isso vai dar-nos outra energia dentro da administração pública para melhorar a eficiência dos hospitais e prestar melhores cuidados de saúde.

Mas a verdade é que é muito difícil de avaliar o que é um mau resultado em termos de saúde ou em termos de economia?

Em primeiro lugar são questões indissociáveis, não é possível ter um hospital bem gerido sem ele estar financeiramente equilibrado, ou seja, para prestar bons cuidados de saúde é necessário ter um hospital financeiramente equilibrado. Mais, existe um custo de oportunidade e estamos a gerar desperdício por não termos meios para tratar um doente. Não é compreensível que possamos ter de uma forma quase crónica um défice no setor da saúde.

Uma greve como esta dos enfermeiros às cirurgias custa muito mais do que parece?

Tem o custo imediato de reputação do SNS. Nós tivemos perto de 40 dias de greve, estamos a falar de perto de 8000 cirurgias adiadas. Não foi só este momento desta greve nos blocos operatórios, vem já de trás, temos o caso de recusa de prestação de cuidados nas maternidades pelos enfermeiros especializados em obstetrícia. Existe aqui um momento em que o cidadão começa a desconfiar do sistema, e isto é grave. Creio que é o maior risco de reputação do SNS. Por outro lado, internamente, dentro das organizações também é muito complexo gerir estas circunstâncias, até porque há profissionais que querem operar e sentem a obrigação deontológica de operar e temos outros que estão a recusar e a bloquear o acesso a cuidados, e isto vai deixar marcas para o futuro na relação entre as equipas dentro das instituições.

E esta greve é justa?

As reivindicações dos enfermeiros são justas. Eu creio que este tipo de greve, com esta duração, ultrapassa o que poderá ser aceitável, parece-me exagerada e com repercussões na vida das pessoas. Uma das profissões mais fragilizadas foi a de enfermagem. Existindo um excesso de enfermeiros no mercado, foram aplicadas remunerações muito variadas ao longo do tempo. Na prática, criámos um caldo muito permeável à contestação social. Creio que é um problema de difícil resolução. As reivindicações da parte dos enfermeiros e que foram apresentadas publicamente são incompatíveis com a gestão adequada do erário público. Salvo erro, a primeira reivindicação da base salarial era um aumento de cerca de 600 euros, creio que os sindicatos reconhecem que não dá e já fizeram um abaixamento no processo negocial.


Pareceu-lhe desde o início que era uma greve política?

Não, talvez todas as greves sejam de natureza política, mas não me parece. Há um mal-estar grande… Há um livro que saiu agora do Conselho Económico e Social que tem alguns pontos sobre essa matéria, que é a sobrecarga dos profissionais de saúde. Entre 2010 e 2017, se considerarmos o número de trabalhadores em horário equivalente completo, temos uma redução de cerca de 20% de assistentes operacionais, 20% de assistentes técnicos e de 67% de enfermeiros e também de outros profissionais, nomeadamente técnicos de diagnóstico e terapêutica.

E isso não corresponde a uma menor necessidade dos hospitais?

Não. Corresponde a necessidades maiores porque existem muito mais necessidades. Pior do que isso: quando cortámos em assistentes operacionais, os antigos auxiliares de ação médica ou os assistentes técnicos do secretariado clínico, estamos a falar de profissionais que tinham tarefas muito bem definidas e cujo desaparecimento vai obrigar à migração das tarefas para outros profissionais. Nos internamentos, essas tarefas que eram feitas pelos auxiliares de enfermagem migraram para os enfermeiros. Considerando que os hospitais atualmente têm uma elevada restrição até na contratação de substituição, o que vai ocorrer é que existe uma sobrecarga nos profissionais de enfermagem e que cria este mal-estar nas organizações. Para o SNS conseguir evoluir é necessário criar paz social dentro do setor, e ela não está de todo garantida neste momento.

Alexandre Lourenço, presidente da Associação de Administradores Hospitalares.
Alexandre Lourenço, presidente da Associação de Administradores Hospitalares.© Orlando Almeida/Global Imagens


Não será só nos enfermeiros… O manifesto assinado recentemente pelos diretores clínicos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central em que fica dito que a segurança clínica está comprometida nos hospitais desta zona de Lisboa. Aliás, o rol de queixas é vasto: falta de pessoal médico, pessoal técnico, pessoal de enfermagem, pouca disponibilidade de material de consumo, falta de investimento em inovação… Rematando com a ideia de que pode estar em causa a mera logística para o normal exercício profissional. Estamos próximos de uma situação de rutura?

Não queria chegar a uma expressão dessa natureza, mas os dados claros: até 2017 tivemos uma queda no investimento, pelo menos desde 2009; em percentagem de PIB temos o menor investimento de que existe memória, pelo menos neste século, no SNS. Em 2017, os hospitais-empresas chegaram à pior situação orçamental de sempre. Portanto, é fácil perceber que existe uma situação de desequilíbrio, além de vermos, de uma forma genérica, uma instabilidade laboral nestas organizações.
Numa área altamente tecnológica, se não estivermos a fazer investimento, grande parte dos equipamentos que estão a ser utilizados estão obsoletos. Isto não está a acontecer. Dizíamos que o SNS tinha os melhores equipamentos disponíveis no sistema de saúde português, hoje isso não será verdade. Por outro lado, esta falta de profissionais leva a que exista uma deterioração grande da qualidade de cuidados quando temos necessidades crescentes. Talvez isto também seja difícil de perceber para a equipa ministerial das Finanças: ao contrário de outras áreas, como a educação, em que temos menos alunos, os serviços públicos, que com o processo de automatização e de informatização passaram a ter menos necessidade de funcionários, o setor da saúde tem muito mais necessidades. Uma das grandes questões que temos hoje, até neste momento de epidemia de gripe, não é o fluxo de muitas pessoas para o serviço de urgência, o problema é a tipologia dos doentes que vão ao serviço de urgência. Problemas de cariz social e pessoal, pessoas com mais de 65 anos, com multipatologias e com problemas sociais graves. Os hospitais são o último reduto a que estas pessoas recorrem, são pessoas que vão necessitar de internamento, e os hospitais não têm capacidade até para escoar os doentes que são fruto de internamento social e que já não têm necessidade de cuidados de saúde.
Vemos toda a sociedade a mudar – hoje já não vamos ao banco, utilizamos o homebanking, já não temos filas como tínhamos para ir levantar o cheque ao banco, vamos ao supermercado e temos uma facilidade enorme de qualidade do serviço -, e no SNS não fomos capazes de inovar o modelo de prestação de cuidados. Temos uma situação muitas vezes até de um aumento substantivo da procura, com novos tipos de doentes, e não conseguimos dentro do SNS alterar o modelo de prestação de cuidados para o tornar adequado às expectativas e às necessidades das pessoas.Esta necessidade de reinvenção do modelo de prestação de cuidados exige investimento. A OCDE diz que, para os países desenvolvidos até 2030, é perspetivado que exista uma despesa pública em saúde na ordem dos 15%, 16%. Em Portugal, estamos em 4,8%. Portanto, a pressão demográfica, a pressão das tecnologias vai aumentar obrigatoriamente a despesa. A grande matéria que temos de discutir, porque vai afetar o setor público e o setor privado e naturalmente a saúde de todos, é como mudamos o modelo da prestação de cuidados e o tornamos mais eficiente e mais próximo das necessidades das pessoas.

Não quis falar em rutura, mas vê refletido no Orçamento para 2019 já algumas das necessidades, que são muitas, que aqui elencou? Porque se esse nível de necessidades se mantiver, será mais ou menos inevitável que falemos de rutura dentro de algum tempo.

O SNS não vai deixar de existir, o grande drama que pode suceder ao SNS é a classe média optar por seguir outro caminho.

Porque é que isso é um grande drama?

É um drama porque o único garante da universalização dos cuidados, o acesso universal aos cuidados de saúde é o Serviço Nacional de Saúde. Facilmente, o setor privado tem decisões económicas racionais. O transplante nunca vai dar qualquer tipo de lucro ao setor privado, são áreas altamente tecnológicas em que foi necessário muito investimento. Para o setor privado nunca será interessante ter essas áreas. A situação de rutura no SNS vai ser quando a classe média optar por ir ao setor privado de uma forma maciça, isso ainda não sucedeu, mas esta deterioração da confiança que pode existir entre o cidadão e o SNS leva naturalmente a esse caminho.

E isso não está refletido no Orçamento para este ano?

Não, não está. Está refletido para estes hospitais que veem um aumento do seu orçamento, que veem a sua autonomia e vão ter obrigações para serem mas eficientes. Vai porventura permitir reduzir o crescimento da dívida a fornecedores, mas estamos longe de conseguir saber que propostas concretas existem para o SNS. A grande discussão, e faz-se esse convite aos partidos políticos que vão iniciar a discussão para as eleições legislativas, é saber que propostas concretas existem para o SNS. Não basta dizer: eu sou favorável ao SNS, que foi a melhor conquista de abril. Estas frases são frases ocas e o que é necessário é frases concretas e planos concretos para o SNS, e estamos longe de ouvir essas frases. Creio que a discussão política está um pouco ao lado. A discussão deve ser sobre como é que vamos garantir cuidados de qualidade e aos quais os cidadãos tenham acesso.

E quanto é que isto custa… Quanto é que custaria a mais do que é gasto neste momento?

Creio que facilmente chegamos a uma conta e sabemos quanto é o défice do SNS.

Catorze mil milhões de euros.

Acumulado. Não sei qual é que vai ser o encerramento de 2018, mas será na ordem dos 200, 300 milhões de euros. Temos essencialmente aqui três discussões. Uma é perceber qual é a população que é coberta, já que assumimos constitucionalmente que é toda a população que deve ser coberta pelo SNS. Por outro lado, que serviços é que oferecemos. Temos muitas áreas de serviços que podem ser reconvertidos noutras atividades. Há um processo atualmente em curso, ainda incipiente, que é o de hospitalização domiciliar e desenvolvimento de cuidados domiciliários, até de serviços de monitorização remota dos doentes, particularmente em doentes crónicos. Nesse campo temos bons exemplos em Portugal. Depois, é saber quanto desse valor vai ser assumido pelo cidadão de forma direta. A verdade é que temos atualmente uma taxa de pagamentos diretos dos doentes muito elevada. Estamos a falar de taxas moderadoras, mas cada vez que alguém vai, por exemplo, a uma farmácia percebe claramente que paga bastante do medicamento, aliás mais de 50% do medicamento é assegurado por pagamentos diretos dos doentes. E devemos é perguntar se as pessoas estão a ter acesso a medicamentos nas farmácias-oficina, nas farmácias comunitárias, e não estão a ter. Estes 20% de portugueses que têm menos recursos são pessoas que depois não cumprem a medicação, têm agravamentos nos estados de doença crónica e vão aparecer nos serviços de urgência. São ciclos de pobreza.
Portanto, a discussão devia ser como é que contrariamos isto. É importante perceber como é que a Segurança Social e o setor da saúde podem trabalhar em conjunto, seja, por exemplo, na majoração da comparticipação de medicamentos para famílias com menos rendimentos seja no desenvolvimento de políticas ativas na identificação de idosos em situação de fragilidade e que vão ter necessidade de cuidados de saúde. A verdade é que para o futuro vamos ter estas situações todas agravadas, vamos ter problemas na área do envelhecimento, na demência, e cada vez mais vai ser necessário reestruturar a forma como prestamos cuidados tendo em consideração essas duas vertentes – segurança social e saúde.

Se fosse ministro da Saúde, qual seria a sua prioridade?

A prioridade seria não aceitar o lugar. Creio que a grande obrigação do ministro da Saúde é a de perceber o caminho que quer seguir, mas também criar alguma ilusão. Chamava a atenção do titular da pasta para a necessidade clara de ir perto das pessoas, falar com elas e encontrar soluções. Não é na João Crisóstomo, onde está localizado o Ministério da Saúde, que vão ser encontradas as soluções. As soluções vão ser encontradas junto das pessoas, com os doentes, com as famílias, com os profissionais de saúde. Porque há algo de fantástico em trabalhar no setor da saúde, que é a componente deontológica, a responsabilidade dos profissionais na prestação de cuidados ao próximo. Isso deve ser valorizado, e é obrigação do Ministério da Saúde criar condições para que os profissionais reinventem a forma como prestam cuidados e dar-lhes condições para que eles prestem cuidados de qualidade.

Assistimos nos últimos meses à não renovação de mandato da administração do Hospital de São João, a demissões na Estefânia, em Vila Nova de Gaia, São José. Todas elas têm na base este retrato. Isso quer dizer que as próprias administrações e as pessoas que estão envolvidas nesta pequena – ou grande – batalha do dia-a-dia perderam a esperança na melhoria da situação?

Não. Essas situações são todas um pouco diferentes e as motivações são diferentes. Creio que, à partida, seja percetível que existe um desânimo grande nas equipas, isto não é novo.

Esta semana vai ser uma prova com o pico da gripe. Disse, no outro dia, que não foram implementadas as medidas que era preciso implementar, nomeadamente nas estratégias que impeçam o fluxo dos utentes para os hospitais, continua a haver a questão da redução da carga horária para as 35 horas, que não foi resolvida de todo nos hospitais, há a redução dos profissionais de saúde. Podemos ficar descansados, ou os hospitais vão ficar à beira de um ataque de nervos?

Os hospitais vão fazer o melhor possível.

Mas o melhor possível pode não chegar.

Estamos até a falar um pouco do risco de reputação. Nós não podemos ter um sistema que sistematicamente, todos os anos, está à beira de uma situação de rutura nos serviços de urgência. Manifestamente, não fizemos o suficiente para evitar estas situações. Como disse há pouco, grande parte do problema que temos atualmente, e no afluxo ao serviço de urgência, passa por matérias de natureza social. Aumentar 30% o afluxo ao serviço de urgência não é grave. O que é grave é aumentar a percentagem de doentes que vão à urgência e necessitam de internamento. Esses doentes que necessitam de internamento são idosos com multipatologias, que estão com graves problemas sociais e cujo último recurso é o hospital. Os hospitais têm uma obrigação social, naturalmente, mas não podem ser o último recurso da rede social, deve existir uma rede social que permita evitar estas situações. Há pouco falei da majoração da comparticipação dos medicamentos para as famílias mais pobres, principalmente para idosos com pensões muito reduzidas, e faz todo o sentido pensarmos num sistema de majoração de medicamentos porque estes doentes, que têm diabetes, que têm hipertensão e que não têm capacidades financeiras, fazem opções entre pagar a conta da água e comprar medicamentos, pagar a eletricidade e ter alimentação. Do sistema de saúde exige-se que seja capaz de aumentar a comparticipação dos medicamentos para estes doentes. Estamos a falar de valores muito reduzidos, são medicamentos genéricos, baratos, que só exigem um pequeno esforço do Ministério da Saúde. A nossa grande discussão deve ser como evitar estas situações destes doentes. A maioria dos hospitais contrata camas em lares de terceira idade para ter estes doentes. Essa contratação depende sempre dos hospitais e dos problemas que vão sendo encontrados, mas podemos ter hospitais com 200 camas contratadas ou com 100. Por exemplo, uma medida simples: porque é que os técnicos da Segurança Social não trabalham dentro dos hospitais para identificar estas situações? Atualmente, em alguns hospitais, estamos a fazer um programa de utilizadores frequentes de urgência, grande parte destes são casos sociais e que no único sítio em que conseguem ter cuidados abertos e disponíveis é nos serviços de urgência.

"Há hospitais com 200 camas contratadas em lares de terceira idade"
Alexandre Lourenço


E aí, os centros de saúde não teriam também um papel de alívio das urgências hospitalares?

O que temos de perceber é porque os utentes não recorrem aos centros de saúde.

As pessoas têm sempre a noção de que os meios de diagnóstico estão nos hospitais e não nos centros de saúde.
Porventura, existe também aqui um problema de confiança nos centros de saúde. Nós fizemos um grande investimento ao longo dos anos nos cuidados de saúde primários e é preciso perceber porque não está a funcionar. Muitos países têm solucionado este problema com a dotação de meios de diagnóstico, por exemplo a nível de centros de saúde nas áreas urbanas. O grande problema que temos de urgências é em áreas urbanas. A questão é porque ainda não tomámos opções, por exemplo, de dotar alguns centros, alguns pontos de rede, de equipamentos de exames de diagnóstico, nomeadamente de radiologia ou de química seca – exames laboratoriais ao sangue. Coisas muito simples que conseguiriam resolver os problemas das pessoas. A verdade é que as pessoas vão ao serviço de urgência porque têm confiança. Podem esperar 12 horas, 24 horas, mas têm confiança no resultado que sair dali.

Entrevista a Arsénio Reis e Catarina Carvalho

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