O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre
Lourenço, não deixa dúvidas: “Os contratos de gestão devem ser públicos, tal como o relatório anual de avaliação do grau e das condições de cumprimento em cada exercício.” E crescenta, peremptório: “Os gestores com desempenho insuficiente devem ser afastados” e, “em contrapartida, os gestores com bom desempenho devem ser reconhecidos e valorizados”.
INFARMED NOTÍCIAS – Os administradores hospitalares são pro- fissionais de saúde com formação específica para exercer os seus conhe- cimentos, em particular, na gestão dos hospitais. Com mais de dois anos na pre- sidência da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), que testemunho dá do contributo destes profissionais no âmbito da saúde?
ALEXANDRE LOURENÇO – Celebramos este ano os 50 anos da publicação do Estatuto Hospitalar, que veio a esta- belecer as carreiras de administração, médica e farmacêutica. No seu preâmbulo diz-se: “A administração dos hospitais (…) tornou-se tarefa de profissionais, com preparação cuidada e estatuto ade- quado, visto que a mobilização de meios financeiros e humanos nos serviços de saúde atinge enorme volume e os pre- juízos decorrentes de uma gestão pouco esclarecida podem ser importantíssimos, tanto do ponto de vista económico como social e humano.”
Ao longo destes 50 anos, os administradoreshospitalarestêmcon- tribuído decisivamente para a criação e
desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde. Numa primeira fase, na transformação dos hospitais caritativos numa rede hospitalar geral e universal; numa segunda fase, na consolidação e desen- volvimento da oferta de cuidados de saúde hospitalares.
Apesar da desregulação no exercício de funções de gestão nos hospitais do SNS – mais vincada na criação dos hospitais SA –, os administradores hospitalares continuam a ser chamados às funções de gestão intermédia e de topo pela sua competência e resiliência na defesa do SNS. Atualmente os administradores hospitalares desempenham funções nas mais variadas instituições de saúde (por exemplo, organismos centrais, regio- nais, agrupamentos de centros de saúde, prestadores privados), não se limitando à gestão hospitalar no SNS, reconhecendo- -se a sua mais-valia no desenvolvimento de um sistema de saúde moderno e cen- trado nas necessidades dos doentes e das suas famílias.
IN – Em seu entender, dado a exi- gência crescente de uma gestão adequada no âmbito dos hospitais, os
administradores hospitalares têm sido devidamente aproveitados? Que re- comendação gostaria de dirigir neste contexto a quem governa?
AL – O Tribunal de Contas, e mes- mo a CRESAP, associam o insuficiente desempenho dos hospitais e dos agru- pamentos de centros de saúde à fraca preparação da gestão e dos dirigentes. Não podemos concordar mais. É ne- cessário robustecer os requisitos para o exercício de funções com base em competências e conhecimentos, profissionalizar a gestão de serviços de saúde e avaliar o desempenho dos gestores.
A alternativa a esta estratégia resulta na desconfiança perante a gestão. tendo conduzido a uma hipercentralização da gestão operacional dos hospitais. O Ministério das Finanças adotou uma política de restrição de tesouraria e bu- rocratização da despesa, esperando controlar os custos. Ou seja, passado mais de uma década, a empresarialização, associada à desregulação profissional, ausência de requisitos para o exercício defunçõesdegestãoedesresponsabilização dos gestores, resultou no retorno à estaca zero da autonomia. As consequências são as que observamos: deterioração das condições de trabalho e qualidade de cuidados e descontrolo da despesa.
IN – Na qualidade de presidente da APAH, que significado atribui ao facto de, com alguma frequência, administradores fazerem parte das equipas que vêm dirigindo o Ministério da Saúde, como é o caso, agora, da ministra Marta Temido e do seu secretário de Estado Adjunto Francisco Ramos?
AL – Para os administradores hospi- talares é muito dignificante ter colegas a exercer funções a este nível. Importa enaltecer as qualidades pessoais e profis- sionais da Prof.a Marta Temido e do Prof. Francisco Ramos, salientando que o mérito das suas nomeações é totalmente devido à sua excelência individual.
IN – Uma das suas principais prio- ridades como presidente da APAH consiste na defesa da autonomia da gestão nos hospitais, nomeadamente a nível dos recursos humanos e da com- pra de bens e serviços. Qual é, em seu entender, a realidade? Que ganhos em saúde seriam gerados com as ideias que defende?
AL – A atual política de gestão orçamental do SNS é geradora de ineficiências e prejudicial ao desenvolvimento das po- líticas de saúde. Com efeito, ao invés de se apostar na melhoria da capacidade gestionária das organizações, opta-se pela restrição de tesouraria e adiamento burocrático da despesa. Assim, o orça- mento dos hospitais é subestimado face aos seus custos fixos, atribuindo-se “subsídios” no final de cada ano às ins- tituições menos eficientes para pagar aos grandes credores. Os hospitais veem
assim dilatados os seus prazos médios de pagamento e os fornecedores repercutem este custo nos preços dos bens e serviços, aumentando desnecessaria- mente a despesa. Ao nível dos recursos humanos, a aprovação de contratações é realizada centralmente a conta-gotas, sem que exista algum racional percetí- vel, optando-se pela impossibilidade de contratação de auxiliares de ação médica e proíbindo-se a contratação de profissionais em regime de substituição. Assim, cancelam-se cirurgias por falta de um auxiliar, um enfermeiro ou médico ausentes por motivos de doença ou licença de maternidade.
Ora é necessário dotar os hospitais de autonomia para fazerem face às suas necessidades quotidianas. Naturalmente dentro de um quadro de responsabili- zação dos gestores. Recentemente, o anterior ministro da Saúde anunciou o aumento da autonomia para os onze hospitais com melhor eficiência. Estes hospitais devem apresentar um plano de atividades e orçamento, vendo refor- çados os seus orçamentos e os gestores responder pela sua execução. Não sendo possível alargar o número de hospitais envolvidos, este é o caminho que consideramos adequado.
IN – A autonomia da gestão dos hospitais em que aposta pressupõe res- ponsabilização na gestão, avaliações rigorosas e completa transparência. Quer, Dr. Alexandre Lourenço, por- menorizar o que pensa a este respeito?
AL – O estatuto do gestor público obriga à celebração de um contrato
de gestão com qualquer empresa pública. Nos hospitais EPE, a avaliação do desempenho, com base nos contra- tos de gestão, compete a uma comissão de avaliação nomeada pelos membros do governo responsáveis pela área das Finanças e da Saúde.
Temos vindo a defender a aplicação do estatuto do gestor público. Os con- tratos de gestão devem ser públicos, tal como o relatório anual de avaliação do grau e das condições de cumprimento, em cada exercício. Ou seja, os gestores com desempenho insuficiente devem ser afastados. Em contrapartida, os gestores com bom desempenho devem ser reconhecidos e valorizados. Neste contexto, importa compreender quais os motivos do incumprimento da lei.
Finalmente, como mencionei, os con- selhos de administração dos 11 hospitais selecionados para um modelo de autonomia alargada vão ser avaliados pelo seu contrato de gestão – alinhado com o plano de atividades e orçamento.
IN – Uma das pretensões que al- guns responsáveis na esfera da saúde têm defendido, de há longos dos anos a esta parte, nomeadamen- te ministros, é o exercício de funções em exclusividade, em particular no caso dos médicos. Na qualidade de presidente da APAH, e por certo conhecedor privilegiado do que a este propósito pensa a generalidade dos gestores hospitalares, qual o seu entendimento neste campo? Defenderia que os médicos só pudessem traba- lhar em regime de exclusividade nos hospitais públicos?
AL – A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares não tem qualquer posicionamento definido quanto a esta matéria. Contudo, parece-me que o caminho passa por criar um ambiente favorável à dedicação dos profissionais ao SNS considerando as condições de trabalho e a remuneração associada ao desempenho.
Os Centros de Responsabilidade Integrados podem ser um bom exemplo se forem dadas as condições adequadas ao seu funcionamento e permitirem remunerações associadas a resulta- dos em saúde, para além do volume de cuidados.
IN – O consumo de medicamentos, que traduzem nos hospitais entre 25 a 30 por cento dos encargos, é uma problemática que a APAH vem acom- panhando, como bem espelha a 10.a edição do “Fórum do Medicamento”, a realizar 16 de novembro, no Centro Cultural de Belém. Qual a importância desta iniciativa, dedicada este ano ao tema “Financiamento e equidade para um SNS sustentável”?
AL – O Fórum do Medicamento é uma iniciativa anual da APAH que visa contribuir para o conhecimento e parti- lha de boas práticas na área da gestão do medicamento. Esta iniciativa visa contribuir para a discussão associada à gestão da tecnologia medicamento, promoven- do a partilha de boas práticas e a procura de soluções concertadas que permitam alcançar os melhores padrões de exce- lência, qualidade e sustentabilidade na prestação de cuidados de saúde do SNS. Este ano, na sua 10.a edição, o Fórum será dedicado ao tema “Financiamento e equidade para um SNS sustentável”, com o qual pretendemos introduzir uma dis- cussão construtiva focada, num primeiro momento, nos desafios do financiamen- to e na liberdade de escolha do cidadão, e num segundo momento, na equidade no acesso à prestação de cuidados de saúde, utilizando como case study a construção de uma via verde oncológica.
IN – O peso dos medicamentos nos encargos do SNS, particularmente dos medicamentos inovadores, é uma realidade que os administradores hos- pitalares conhecem bem e que tem levado a APAH a um relacionamento cada vez maior, quer com a Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica, quer com o Infarmed. Que resultados tem dado essa relação? O que pensa do desempenho destas instituições neste contexto?
AL – Os administradores hospitalares trabalham de perto com as comissões locais de farmácia e terapêutica. A nível nacional, existe consciência da impor- tância em garantir a articulação entre a agência nacional e as unidades prescritoras de forma a garantir o acesso com equidade e sustentabilidade do sistema de saúde. Neste sentido, a Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica tem sido um importante instrumento para alinhar os vários atores através da articulação e partilha de informação, permitindo uma utilização racional do medicamento.
IN – O presidente da APAH apre- sentou recentemente, na Gulbenkian, os resultados do “Projeto 3F – fórmula de financiamento para o futuro”. Referindo-se ao “volume de finan- ciamento do SNS”, sublinhou, nessa circunstância, a esperança de que o orçamento de 2019 venha a dar resposta a esse problema. Quer pormenorizar?
AL – É por demais reconhecido que o financiamento público para a área da saúde é insuficiente. Mais, estamos a afastar-nos dos restantes países desen- volvidos, sendo que, em 2017 tivemos o menor investimento público em termos de PIB pelo menos dos últimos dez anos. Por outro lado, da despesa total em saúde, o financiamento público fica bastante abaixo do verificado na média dos restantes países – 66,2 por cento versus 78,7 por cento. Temos a expectativa de que durante a discussão do orçamento seja possível inverter esta trajetória.
Um desafio centrado nos cuidados ao cidadão
Contudo, apesar da sua relevância, não podemos ficar apenas pela discussão orçamental. Neste sentido, importa discutir de que forma o volume de financiamento
é alocado no sistema de saúde e em que medida este modelo de alocação influencia o modelo de prestação de cuidados. Neste contexto, lançámos o “Projeto 3F” com o objetivo de identificar os principais obstáculos operacionais que afetam os hospitais do SNS e desenvolver pos- síveis soluções que permitam melhorar e evoluir o modelo de prestação de cuida- dos de saúde. Neste desafio objetiva-se garantir o desenvolvimento de cuidados centrados no cidadão, com os melhores resultados, melhor satisfação e menor desperdício possível. Do trabalho desenvolvido resultam dez conclusões em que o cidadão é o elemento central da necessidade de mudança na prestação de cuidados.
IN – Mais de dois anos volvidos sobre o início do seu mandato, que objetivos gostaria ainda de ver realizados?
AL – Foi uma honra servir a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares durante os últimos dois anos. Têm sido dois anos intensos de um excitante trabalho de equipa.
Apesar de ser amplamente reconhecido que o desempenho e a melhoria dos serviços de saúde dependem da existên- cia e qualidade da gestão profissional das organizações de saúde, temos ainda um longo caminho para garantir uma melhoria substantiva da gestão de serviços de saúde em Portugal. Seja pela autono- mia das instituições e responsabilização dos gestores, seja pela qualificação dos gestores.
Neste sentido importa que continuemos a desenvolver esforços para profissionalizar a liderança e gestão dos serviços de saúde. Recentemente adotámos, em assembleia geral, o Diretório de Competências de Gestão em Saúde da Federação Internacional dos Hospitais para informar e alinhar pro- gramas de desenvolvimento de gestão de serviços de saúde em todos os níveis pré-graduados e graduados de educação, formação contínua e desenvolvimento profissional. Desenvolvemos mesmo um programa de formação contínua com reputadas instituições académicas nacionais e internacionais – a Academia APAH. Nesta sequência importa agora avançar para um sistema formal de creditação, incorporando estas competências. Ao nível do SNS, importa modernizar a carreira de administração hospitalar para uma carreira de gestão de serviços de saúde baseada no mérito. A anterior equipa governativa tinha esse compro- misso com a APAH e estou certo de que a nova equipa manterá a palavra dada.
A entrevista original pode ser consultada aqui