O alargamento de horários nos hospitais do SNS para recuperar a actividade que ficou por fazer por causa da pandemia implica ter mais assistentes técnicos, diz o presidente da Associação de Administradores Hospitalares.

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, acredita que há agora uma janela de oportunidade para tentar trazer para o Serviço Nacional da Saúde alguns médicos e outros profissionais de saúde que ficaram sem remuneração durante dois meses nos hospitais privados.

Disse que os profissionais de saúde que têm estado na linha da frente estão cansados.

Há um desgaste, quer emocional quer físico, muito elevado dos profissionais que estão na linha da frente, nas enfermarias, nos cuidados intensivos, nas urgências. Acho que precisam de descansar e merecem ter um tratamento especial, até porque deixaram de ver os familiares, os filhos, os pais, durante dois meses. E é fulcral que o seu trabalho seja valorizado porque, numa segunda ou terceira vagas, será importante que voltem a responder da mesma forma, com o mesmo empenho.

Isso implica um aumento das remunerações?
O que deve ser feito rapidamente é dar-lhes tempo para descansar, substituí-los. Para termos um bom Serviço Nacional de Saúde temos que ter profissionais de saúde saudáveis. Depois, há aspectos pecuniários que podem ser equacionados.

Os profissionais que trabalham no SNS são suficientes para se conseguir ter esse um Serviço Nacional de Saúde dual, de resposta covid e não covid, que agora é necessário? Como é que se pode, por exemplo, ir buscar médicos ao sector privado, onde são mais bem pagos?
Há profissionais liberais a recibos verdes ou com contratos de prestação de serviços no sector privado. Alguns estiveram a trabalhar sem remuneração durante dois meses porque os hospitais privados praticamente eliminaram a sua actividade programada. Perceberam que isso pode acontecer. Pode haver aqui uma janela de oportunidade para tentar trazer estas pessoas para o SNS. Não podemos andar a queixar-nos que tivemos profissionais que saíram do SNS quando pode existir aqui uma oportunidade para os atrair de novo. Um exemplo é o dos anestesiologistas, uma especialidade em que existe uma falta crónica.

Neste período do estado de emergência, houve um grande recurso às teleconsultas. Agora que a situação está mais calma, acha que os hospitais vão voltar a funcionar da mesma forma que funcionavam antes?
Acho que não voltaremos ao passado. Grande parte das consultas feitas durante este período foram realizadas pelo telefone, algumas, em número reduzido, por videochamada. Mas mesmo essa transformação digital exige planeamento. Os hospitais não têm equipamento informático, câmaras, nem os doentes têm todos smartphones. Agora, é evidente que há transformações que vieram para ficar. Por exemplo, não faz sentido que se volte a obrigar os doentes a virem às farmácias dos hospitais levantar os seus medicamentos. Ficou demonstrado que, apesar das resistências ao longo dos anos, é possível fazer as coisas de forma diferente. 

As consultas com horas marcadas nos hospitais públicos também vieram para ficar?
Já defendíamos isso há muito tempo, está no programa do Governo, é um compromisso do Governo. 

A recuperação da actividade que ficou por fazer vai obrigar a um alargamento do horário normal do trabalho?
Sim, vai obrigar ao alargamento dos horários, mas isso tem implicações no número de assistentes técnicos que são necessários para a abertura dos serviços administrativos. Até posso ter médicos disponíveis para fazer dois horários, das oito às duas da tarde e das duas até às oito da noite. Mas muitos hospitais não o conseguem fazer porque não têm assistentes técnicos, não por causa dos médicos. Portanto, toda esta transformação exige um planeamento e um trabalho em conjunto com os hospitais para se perceber que recursos são necessários.

É preciso agora ver se os ventiladores que foram comprados “cumprem as regras de qualidade”

“Abrimos alguns hospitais que acabaram por ver muito poucos doentes com covid”, critica o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, que propõe o regresso à fase inicial, só com algumas unidades dedicadas a estes pacientes. “Na altura houve uma ordem: abra-se tudo”, recorda Alexandre Lourenço, que sublinha que a transformação do sistema que está em curso exige “impulso e liderança”. “Nenhum hospital por si só consegue dizer: já não tenho doentes covid. O Ministério da Saúde deve ter uma estratégia de rede, coerente”. E diz que não basta fazer despachos ordenando aos hospitais que recuperem a actividade perdida. “Em políticas públicas os despachos não resolvem nem transformam o sistema. Espero que ninguém venha dizer no futuro: nós já publicámos o despacho, já demos indicações. Essa seria a demissão da gestão do Serviço Nacional de Saúde”.

A ministra da Saúde disse que, até Abril, ficaram por fazer nos hospitais públicos 540 mil consultas e 51 mil cirurgias. Vai ser possível recuperar tudo o que ficou por fazer por causa da resposta à pandemia de covid-19? E quanto tempo é que isso vai demorar?
Não vai ser possível recuperar tudo, voltar aos números de 2019. E as indicações que temos de várias sociedades médicas, como a de oncologia e de cardiologia, é que estes atrasos têm consequências, não só no diagnóstico de novos casos, mas também no acompanhamento de doentes já identificados. O esforço de reactivar a actividade nesta fase de transição é um esforço enorme que não vai colmatar as perdas que tivemos dada a necessidade de responder à covid-19. De uma forma séria, não podemos dizer às pessoas: daqui a três ou quatro meses está tudo retomado. Até porque para fazermos estas consultas estamos a adiar outras. Há uma actividade que fica por fazer que não é recuperada e isso tem impacto na saúde das pessoas.

Esse fenómeno reflectiu-se já numa mortalidade acima do que era esperado em Março e Abril e que não se justifica apenas com as mortes dos doentes com covid.
Se não há resposta do sistema de saúde, é evidente que isso tem efeitos. Aliás, já há três estudos publicados em Portugal que demonstram, com diferentes dimensões e metodologias, qual tem sido o impacto na mortalidade.

A resposta de Portugal à pandemia tem sido muito elogiada. Os exemplos de Itália e de Espanha foram determinantes?
Foram de certa forma uma vacina para nós porque acabámos por tomar decisões de confinamento muito mais cedo. Por outro lado, tivemos em Portugal uma infecção secundária, não tivemos casos importados da China. E felizmente foi tomada uma decisão avisada de implementar medidas de distanciamento e de confinamento que teve repercussões na capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde [SNS].

Já disse que, apesar de termos sido poupados, podemos aprender com alguns erros, porque a resposta podia ter sido melhor. De que forma?
Hoje podemos dizer que podíamos ter feito algumas coisas de outra forma, mas [isso não era fácil] para quem estava a tomar decisões e face ao grau de incerteza que existia no início de Março em relação à dimensão da epidemia. A resposta podia, porém, ter sido melhor em vários aspectos, por exemplo nas questões relacionadas com aquisições de ventiladores, de equipamentos de protecção individual [EPI, como máscaras, batas, etc].

Mas nessa altura era urgente ter esses equipamentos nos hospitais. Podíamos mesmo ter feito estas aquisições de forma diferente?
Podíamos. Espanha e Itália, por exemplo, fizeram-no e são países altamente regionalizados. Na prática, isto passa por ter uma central de compras. Vou dar um exemplo: a questão dos testes de diagnóstico. Por que é que ainda hoje o SNS não tem capacidade para realizar os testes de diagnóstico de que precisa? Em Fevereiro, o Ministério da Saúde podia ter negociado directamente com os grandes fornecedores, garantindo que o SNS teria reagentes em quantidade suficiente para fazer os testes. Na questão dos ventiladores e dos EPI, a compra centralizada representa ainda outro benefício – o da distribuição equitativa – porque o que observámos durante este período foi que os hospitais com maior capacidade financeira e argúcia conseguiram ter equipamentos antes de outros, e inflacionaram os preços porque foram todos ao mercado. Uns conseguiram outros não, criando vários desequilíbrios no sistema.

Mas houve grandes aquisições feitas em nome da Direcção-Geral da Saúde e coordenadas pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, que é a central de compras do SNS, em que os preços negociados foram muito diferentes.
Creio que há aqui processos que têm que ser analisados com cuidado, mas desconhecemos ou temos poucas informações até ao momento sobre as aquisições que os hospitais individualmente fizeram. Faz sentido que os hospitais estivessem a competir com os concursos da DGS? Não faz sentido que a mesma entidade tenha múltiplos pontos de compra.

É preciso recuar no tempo. Nessa altura os profissionais de saúde queixavam-se da falta de máscaras e de outros equipamentos de protecção. Era preciso comprá-los rapidamente num mercado em que os preços dispararam de forma inusitada.
Se existe alguma desculpa na primeira, segunda ou terceiras semanas, depois tem que haver estratégia, um comprador que vá ao mercado e que adquira todos os equipamentos necessários. Durante algum tempo tivemos faltas de máscaras, batas, viseiras. Muitos hospitais até ficaram dependentes de doações de particulares e isso foi uma forma generosa de a sociedade portuguesa contribuir. Mas nesta questão dos EPI só deveríamos abrir hospitais e serviços com a garantia de conseguirmos assegurar a protecção dos seus profissionais. E abrimos algumas instituições que acabaram por ver muito poucos doentes com covid. Começamos com dois hospitais, alargamos para sete…. Esse alargamento da rede [dedicada aos doentes com covid-19] podia ter sido mais conciso. Na altura houve uma ordem: abra-se tudo. A epidemia estava a evoluir com alguma rapidez e havia receio e algum nível de incerteza, mas não devemos ser tomados por essa incerteza. Deve haver um planeamento escalonado, uma abertura faseada das instituições até para proteger os profissionais e os doentes.

Se numa fase inicial havia uma falta clara de ventiladores, com as aquisições entretanto feitas e as doações, já temos ventiladores em número suficiente?
Em relação aos ventiladores, o que parece agora relevante é perceber se todas as aquisições que foram feitas correspondem a ventiladores que cumprem as regras de qualidade. Há aqui agora um trabalho a fazer, o de ver se estas compras de vários milhões de euros correspondem a ventiladores de qualidade e se na prática os fornecedores cumpriram os requisitos, e se os requisitos foram bem definidos.

Há hospitais têm agora menos de uma dezena de doentes com covid internados. Propõe que tenhamos de novo hospitais onde estes doentes fiquem concentrados como no início?
Estamos a passar por uma fase de transformação do sistema de saúde. Vamos ter que manter um sistema que responda à covid e um que tenha capacidade de responder às necessidades de cuidados gerais da população, um SNS dual. Mas só conseguimos acelerar esta transformação quando tivermos hospitais libertos de covid, a funcionar como os IPO que, de uma forma inteligente, são covid free sem deixarem de testar os doentes que vão fazer quimioterapia e cirurgia.

A ministra da Saúde disse que o SNS teve que se reinventar para dar resposta à covid. Concorda?
O que o SNS demonstrou foi que tem plasticidade para responder a uma situação de elevada incerteza. Mas também demonstrou, e está a demonstrar, limitações na capacidade de se reorganizar. Porque esta transformação exige também impulso e liderança. Precisámos de clarificar esta transformação e dar orientações. Não pode ser tudo ao monte e fé em Deus. Nenhum hospital por si só consegue dizer: já não tenho doentes covid. O Ministério da Saúde deve ter uma estratégia de rede, coerente, é obrigatório que exista uma planificação nacional. Repare: saiu o despacho da senhora ministra para que hospitais recuperem a actividade que ficou por fazer. Em políticas públicas os despachos não resolvem nem transformam o sistema. Espero que ninguém venha dizer no futuro: nós já publicámos o despacho, já demos indicações. Essa seria a demissão da gestão do SNS, a desresponsabilização pelo que se está a passar. Outra coisa: a Entidade Reguladora da Saúde, pegando nesse despacho, veio agora pedir aos hospitais para entregar os planos. Abriu um procedimento de monitorização sobre a execução deste despacho, o que surpreendeu os hospitais. Nós estamos habituados a que a ERS aplique multas por incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos. Mas grande parte das limitações de resposta dos hospitais são impostas orçamentalmente. Os hospitais não têm capacidade para contratar, mesmo que as pessoas existissem no mercado. Há matérias em que a ERS devia estar mais atenta.

Entrevista à Alexandra Campos do Jornal Público a 24 de maio de 2020. A notícia poder lida on here