O colapso da resposta hospitalar não é uma inevitabilidade. Para explicar o seu funcionamento, permitam a analogia de comparar o hospital a um comboio de brincar (ver Millard PH, McClean S. Modelling Hospital Resource Use: a Different Approach to the Planning and Control of Health Care Systems. London: Royal Society of Medicine Press; 1994).

O hospital está sempre em movimento, circulando, numa pista, a uma velocidade constante. Para melhorar o desempenho do transporte de passageiros, várias opções são possívei

a) Adicionar mais carruagens (ou seja, mais camas);

b) Impedir o embarque de passageiros;

c) Impedir que os passageiros pernoitem;

d) Persuadir os passageiros a descer mais cedo do comboio, e continuar a viagem através de outro meio de transporte.

O hospital e o comboio de brincar

Libertámos carruagens ao adiarmos o diagnóstico e o tratamento de doentes não-covid – ficaram para trás ao não encontrarmos respostas alternativas. Mas quantas mais carruagens podemos acrescentar para responder aos doentes covid-19? Para uma cama hospitalar ser ativada, não basta apenas ter o bem material, são necessários recursos humanos especializados. “Carruagens mais sofisticadas” necessitam profissionais diferenciados por formação e experiência – camas de cuidados intensivos. Tratamentos subótimos em enfermarias gerais vão redundar em maior necessidade de cuidados intensivos – não basta pensar nas carruagens sofisticadas. Passados dez meses a respondermos a esta pandemia, quantas camas temos disponíveis para doentes covid-19 (camas físicas e profissionais devidamente preparados)? Público e privado. Disponíveis – não ocupadas por outros doentes.

Como podemos impedir o embarque de passageiros? Segundo estimativas que apresentámos na semana passada, necessitaríamos perto de seis mil rastreadores de contactos para assegurar inquéritos epidemiológicos e vigilância ativa de casos suspeitos. Quantos existem neste momento? Quantos inquéritos estão por realizar? Quantos contactos estão por realizar? Por que razão continuam doentes a vir às urgências hospitalares sobrelotadas para realizar testes? – demasiados encaminhados pela Linha de Saúde 24. Quantas e quais são as estruturas para acompanhamento domiciliário de doentes, ou estruturas para internamento de baixa intensidade? A aplicação de critérios de internamento é monitorizada em todas as entidades? Existe apoio técnico para os hospitais que aplicam critérios mais largos?

Como podemos impedir que os passageiros pernoitem? Já falámos dos critérios de internamento. Abordemos agora os de alta. Estão a ser monitorizados? Existe apoio clínico às entidades com demora de internamento excessiva. Foi desenvolvido o programa de hospitalização domiciliária para doentes covid-19? Quais e quantas são as estruturas de retaguarda para acolher doentes com necessidade de menor intensidade de cuidados ou que, simplesmente, não têm apoio na comunidade (18% dos doentes covid-19 são casos sociais, segundo estudo que publicámos em maio). Apenas com essas estruturas podemos persuadir os doentes a libertar camas para outros doentes em necessidade.

Nos comboios a sério, sabemos em tempo real quantos e quais lugares estão disponíveis. Não teríamos tido tempo para preparar um modelo semelhante? Uma estrutura que antecipasse necessidades e coordenasse meios, evitando, por exemplo, a transferência de doentes para hospitais a centenas de quilómetros.

Para além das suas responsabilidades habituais, os serviços de saúde portugueses respondem à covid-19 há cerca de 10 meses. Passado tanto tempo, a exaustão é aceitável. A falta de planeamento e coordenação não. Mesmo um comboio de brincar necessita de uma locomotiva, e de alguém que monte a pista. Fica mais uma vez o apelo.

#Hoje é a minha crónica semanal publicada no Jornal de Notícias às quartas-feiras.

O artigo integral pode ser lido aqui

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