Decorria o ano de 1978. O Ministro dos Assuntos Sociais António Arnaut solicitou ao seu Secretário de Estado da Saúde, Mário Mendes, que calculasse o custo da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A tarefa destes cálculos impossíveis sobrou para Júlio Reis, um administrador hospitalar do Santa Maria e adjunto do Secretário de Estado. Feitas as contas, a equipa dos assuntos sociais foi ao Conselho de Ministros apresentar os números. À época, o Ministro das Finanças e do Plano era Victor Constâncio. Nessa reunião a resposta à criação do futuro SNS foi clara:
Não!
Como é do domínio público, o SNS é mais tarde criado em 1979. Victor Constâncio não era ministro. António Arnaut também não. Era deputado à Assembleia da República e não tinha desistido.
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O modelo de empresarialização dos hospitais portugueses inicia-se experimentalmente na década de 90 com o Hospital do Barlavento Algarvio, o Hospital S. Sebastião e a Unidade Local de Saúde de Matosinhos. Em 2002, 34 hospitais do setor público administrativo são transformados em 31 hospitais sociedades anónimas (SA). Em 2005, estes são convertidos em entidades publicas empresariais (EPE), alargando o número de hospitais empresarializados ao longo dos seguintes anos.
Este modelo de empresarialização é baseado no princípio em que um dos sócios entra com o capital (Ministério das Finanças) e o outro aporta o conhecimento (Ministério da Saúde). Entre 2002 e 2011, o “sócio do dinheiro” pouco quis saber dos hospitais, sendo na grande maioria das vezes silencioso. Por mais que uma vez, o Tribunal de Contas alertou para este distanciamento. Os resultados operacionais cronicamente negativos serem contabilizados apenas como dívida pública e não contarem para o défice pode ajudar a compreender este comportamento ausente. Como hoje se fala em direito da família, os hospitais eram um caso claro de alienação parental.
O Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) vem alterar este desequilíbrio. Os credores assumem preocupação sobre o setor empresarial do estado, inclusive da saúde. A autonomia dos hospitais é limitada, mas conta-se com a equipa da saúde para gerir o sistema. Com o Governo Centeno a limitação é ainda mais acentuada e o controlo dos custos passa pela restrição de tesouraria e o adiamento burocrático da despesa, com efeitos terríveis sobre a qualidade e eficiência dos serviços prestados.
No mês passado, a equipa das Finanças decidiu elevar a fasquia. Qual sócio ressabiado, decidiu chamar a si as rédeas do negócio e decidir sobre os investimentos estratégicos. Chamou os conselhos de administração dos hospitais e já decide sobre a Rede Hospitalar de Pediatria. Afinal aquilo não deve ser complicado, trata-se apenas de tratar de crianças doentes.
Nesta sequência, o verdadeiro dilema das finanças está ainda por acontecer. Até onde quer ir Mário Centeno? Assumir a pasta da saúde?
Ser Ministro da Saúde é com certeza dos lugares mais difíceis em qualquer Governo. Com esta equipa do Ministério das Finanças é uma tarefa impossível. É por demais evidente que a interferência da equipa das finanças está a aumentar o desperdício e o descontentamento dos profissionais e dos doentes, com consequências graves sobre o SNS.
Quando, em miúdos, jogávamos à bola existiam sempre duas certezas. O mais gordinho ia à baliza e o dono da bola, por pior jogador que fosse, jogava sempre e até escolhia as equipas. Quando perdia, levava a bola para casa. Apenas por birra, se pode compreender a insistência neste modelo de centralização da decisão. A boa gestão e os bons resultados não se atingem através do garrote em curso, conseguem-se com profissionalização e responsabilização dos gestores. A equipa das finanças pode ser a dona da bola, mas não nunca será sequer um bom jogador num jogo que se quer de equipa.
Muito existe a fazer para reduzir o desperdício, humanizar e adequar o SNS às necessidades dos Portugueses. Não é certamente através deste rumo que o vamos conseguir. Enunciando o direito social da proteção da saúde e o dever de a defender e promover, a Constituição da República Portuguesa estabelece que o SNS tem gestão descentralizada e participada.
Como bem percebeu António Arnaut e tantos outros, o SNS é muito mais que uma mera linha na despesa. É uma matéria de direitos sociais.
Artigo de opinião de Alexandre Lourenço publicado na edição de 16 de junho de 2018 do Semanário Expresso.